terça-feira, 13 de novembro de 2012

no ar escasso
da sala estranha
– quase um cárcere –
uns pés descalços
sob a mesa
a se tocarem vagarosos
como se um corpo
inteiro nu
abandonado a olhos cheios
de uma alegria
sensual

terça-feira, 5 de junho de 2012

Amor literal


Cada vez que amava uma mulher e não era correspondido, Amoroso sofria — com o corpo todo. Ele se despedaçava, perdia a cabeça. Chegava a passar meses inteiros sem conseguir sair de casa. E não era incomum que, nesse período, ao fazer-lhe uma visita, um amigo ou parente se deparasse com pedaços de seu corpo espalhados pelos cômodos da casa: um braço esquecido no sofá da sala ou uma perna num canto da cozinha, por exemplo.

Familiares e amigos tentavam em vão restituir-lhe a estrutura. Percorriam, incansáveis, os cômodos da casa à procura das partes do corpo de Amoroso. Mas a cabeça, a cabeça ninguém conseguia encontrar. Então era preciso esperar. Dar tempo ao tempo. Até que ele mesmo se recuperasse, se restituísse por inteiro e, enfim, colocasse a cabeça no lugar.

Mas depois de tantas vezes ter se feito em pedaços por motivos de amor, Amoroso tomou uma decisão: da próxima vez que fosse fisgado pelos encantos de uma mulher, não mais perderia tempo: trataria, imediatamente, de roubar-lhe o coração.

quinta-feira, 31 de maio de 2012



Não entendia como a vida funcionava e também não esperava uma explicação. Sabia que não existia. Não que a explicação. Que ela mesma não existia. Sabia, porque o tempo todo pessoas passavam por ela e não a viam. Sabia, porque implorava por atenção e ninguém dava. Sabia, porque nem mesmo tinha um nome.
E por que não existia, ninguém a notou, o dia inteiro, adormecida na calçada. Só muito tempo depois. Quando começou a feder.

terça-feira, 3 de abril de 2012

cronos, o terrível

Nada escapa à sua fúria e fome. Nada nem ninguém poderá sair ileso à passagem dele: cronos, o terrível. Aquele que tudo destrói e devora. Espreita pelos cantos; toda matéria é seu alimento. Nem mesmo as grandes obras dos autores ditos imortais poderão resistir à sua passagem. Telefones celulares, com frequência, precisam ser substituídos. Pessoas costuma atacar pelas canelas, é quando você começa a ter dificuldades para andar.
Toda existência corre risco. Cuidado, ele, geralmente, ataca pelas costas.

— Sai, cronos! Para de me morder!

Repreendido, baixa olhos e orelhas, mas o rabinho abanando é sinal de que um novo ataque não tardará.

segunda-feira, 19 de março de 2012

a chave

Antônia tem um grande problema: nunca consegue se lembrar em que lugar largou a sua chave. Por isso todas as manhãs o seu ritual é: depois de tomar o café e escovar os dentes pela segunda vez: sair revirando a casa em busca da chave perdida. O mais engraçado (ou estranho) é que ela sempre acaba encontrando a chave no mesmo lugar — todos os dias —, mas nunca se lembra disso, depois.

Antônia acorda super cedo, mas está sempre atrasada pro trabalho; corre pra pegar o ônibus, mas sempre acaba perdendo. Ela dá duro o dia inteiro num escritório, no centro, como auxiliar administrativa: tira cópias, atende ao telefone, manda e-mails, coloca clipes nos potinhos de colocar clipes (quando os clipes acabam), entre outras coisas. Apesar do atraso pra chegar, ela é muito eficiente e prestativa.

Antônia mora sozinha numa kitnet. À noite, quando volta do escritório, gosta de comer batatas fritas (ou cachorro quente) e beber coca-cola em frente à tv. Assiste a todas as novelas e depois vai dormir sonhando com seu príncipe encantado. 

Nos domingos ela fica em casa, e não precisa se preocupar em procurar a sua chave — faz faxina na sua pequena casa e assiste filmes melodramáticos no dvd. Mas nesses dias acontece, de repente, de um pensamento começar a se desenrolar, em que Antônia, lentamente, investiga uma resposta, um significado pra essa vida. Mas domingo é sempre pouco, e ela tem que acordar cedo no dia seguinte. 

E eis que tudo recomeça na segunda e se repete terça, quarta, quinta, sexta e sábado: ela toma o seu café, e, logo depois de escovar os dentes (pela segunda vez), retoma sua grande questão: onde será que está a chave?



sexta-feira, 16 de março de 2012

a mente
certas vezes
é como um ônibus lotado
desses que andam em ruas
de más condições
onde há sempre uma criança que chora
ou alguém que ouve um funk
sem usar fones de ouvido
e você nunca tem certeza
se chegará vivo
ao seu destino

mas ao menos num ônibus
a gente sempre tem
a opção de descer

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

gosto tanto desse teu sorriso
espontâneo em que me abrigo
quando tudo mais
é um cansaço antigo

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A viagem

Era meio sonâmbula que andava. A mente semi-adormecida guiava um corpo magro sem amor. O caminho era o mesmo de todas as manhãs, em que os pés sabiam de cor o chão a ser percorrido. Na boca, uma secura de quem poucos goles d'água bebia. Também comia pouco, porque temia o excesso.
Então, naquela manhã seguia o caminho de sempre. Parara para pegar a condução que a deixaria no trabalho em hora e meia. O ônibus cheio e ela que nem gostava de gente. Gostava mesmo era de animais. E pensava em pipoca, sua cadelinha. Para se livrar do incômodo de estar entre as gentes, pensava em pipoca. Pensava na volta pra casa, quando abriria o portão e reencontraria sua única amiga, que, com pulinhos e o rabinho abanando, viria lhe receber: alegria incompreensível de bicho.
No ônibus, um banco vazio: "Que bom", pensou. Assim não ficaria espremida entre os outros, pois, não gostava que a tocassem. Tinha nojo de gente.
O único homem que a tocou fora seu pai, alguns dias depois da mãe morrer. Tinha o hálito forte de álcool. Chegou, bateu a porta, disse: "guria vem cá!" E o susto. A mão pesada puxou-lhe os cabelos com força. Depois, o corpo pequeno e nu e a falta que a mãe fazia. Quando ele morreu teve um princípio de felicidade. Um princípio. Talvez um alívio que ela achou fosse o começo para ser feliz. Não era.
Recostou-se no banco deixando a mente embalar-se com a viagem. O que seria viver? Um sono?
A dormência do corpo era fraqueza, e o vazio interior era grito mudo. Era fome. Era falta. Era o peso de suportar uma vida sem outros. E ela suportava. No rosto, a expressão dura de que diz: "Sou forte, sou forte". Por quanto tempo se suporta o próprio peso? A vida lhe doía os ossos, e a alma contida lhe causava um leve tremor nas mãos.
Na parada, o enjoo: pessoas. Pessoas e mais pessoas entravam na condução. A moça ao seu lado, gentil, levantou-se para dar lugar a outra que tinha um bebê no colo. Era gorda, a mulher com o bebê no colo. Gorda com um bebê gordinho e o olhar de quem muito deseja. A pele mole e gosmenta encostou-se na sua. Pensou fosse enjoar e de repente, o corpo e o coração quentes. Acalmou-se. 
O sacolejo do ônibus fazia o braço da mulher esfregar-se no seu. A vida roçando... O menino que de tanto tempo em pé tremia as perninhas: “Mãe, num guento, vô sentá!” Sentou-se no chão. A cabeça do menino, hesitante entre lado e outro, foi pender sobre sua perna. O que a vida queria dela? O bebê ao lado, sorrindo, cavou o ar com a mãozinha, pingou os dedinhos nos cabelos dela. E como chuva desmoronando as estruturas, desfez-se em riso o regelado rosto. A vida esfregava-se nela e por dentro a alma vagalumeava atordoada. 
Chegava ao fim a viagem. Mas a terra que pisava era desconhecida. E ao trabalho nem foi. Pegou caminho novo, foi para o parque.
Crianças brincando, pessoas caminhando... Sentou-se na grama. Seu olhar foi pousar na mãe que amamentava o bebê. Um aconchego de sol. O conforto delicado de um colo quente de mulher. 
O que ela queria da vida?
Naquela manhã aninhava os sentimentos que nasciam assustados. Foi quando, inesperadamente, veio a chuva. As pessoas correram fugidas do tempo que desabava. Ela também correu, mas não para fugir. 





quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Cartas a um jovem poeta [ excerto]

"O senhor me pergunta se os seus versos são bons. Pergunta isso a mim. Já perguntou a mesma coisa a outras pessoas antes. Envia os seus versos para revistas. Faz comparações entre eles e outros poemas e se inquieta quando um ou outro redator recusa suas tentativas de publicação. Agora ( como me deu licença de aconselhá-lo) lhe peço para desistir de tudo isso. O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples "Preciso", então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso."

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: L&PM, 2011.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012


rever quem se ama
é como depois de muito
andar por aí,
voltar pra casa,
voltar pra si.


02-01-2012