terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A viagem

Era meio sonâmbula que andava. A mente semi-adormecida guiava um corpo magro sem amor. O caminho era o mesmo de todas as manhãs, em que os pés sabiam de cor o chão a ser percorrido. Na boca, uma secura de quem poucos goles d'água bebia. Também comia pouco, porque temia o excesso.
Então, naquela manhã seguia o caminho de sempre. Parara para pegar a condução que a deixaria no trabalho em hora e meia. O ônibus cheio e ela que nem gostava de gente. Gostava mesmo era de animais. E pensava em pipoca, sua cadelinha. Para se livrar do incômodo de estar entre as gentes, pensava em pipoca. Pensava na volta pra casa, quando abriria o portão e reencontraria sua única amiga, que, com pulinhos e o rabinho abanando, viria lhe receber: alegria incompreensível de bicho.
No ônibus, um banco vazio: "Que bom", pensou. Assim não ficaria espremida entre os outros, pois, não gostava que a tocassem. Tinha nojo de gente.
O único homem que a tocou fora seu pai, alguns dias depois da mãe morrer. Tinha o hálito forte de álcool. Chegou, bateu a porta, disse: "guria vem cá!" E o susto. A mão pesada puxou-lhe os cabelos com força. Depois, o corpo pequeno e nu e a falta que a mãe fazia. Quando ele morreu teve um princípio de felicidade. Um princípio. Talvez um alívio que ela achou fosse o começo para ser feliz. Não era.
Recostou-se no banco deixando a mente embalar-se com a viagem. O que seria viver? Um sono?
A dormência do corpo era fraqueza, e o vazio interior era grito mudo. Era fome. Era falta. Era o peso de suportar uma vida sem outros. E ela suportava. No rosto, a expressão dura de que diz: "Sou forte, sou forte". Por quanto tempo se suporta o próprio peso? A vida lhe doía os ossos, e a alma contida lhe causava um leve tremor nas mãos.
Na parada, o enjoo: pessoas. Pessoas e mais pessoas entravam na condução. A moça ao seu lado, gentil, levantou-se para dar lugar a outra que tinha um bebê no colo. Era gorda, a mulher com o bebê no colo. Gorda com um bebê gordinho e o olhar de quem muito deseja. A pele mole e gosmenta encostou-se na sua. Pensou fosse enjoar e de repente, o corpo e o coração quentes. Acalmou-se. 
O sacolejo do ônibus fazia o braço da mulher esfregar-se no seu. A vida roçando... O menino que de tanto tempo em pé tremia as perninhas: “Mãe, num guento, vô sentá!” Sentou-se no chão. A cabeça do menino, hesitante entre lado e outro, foi pender sobre sua perna. O que a vida queria dela? O bebê ao lado, sorrindo, cavou o ar com a mãozinha, pingou os dedinhos nos cabelos dela. E como chuva desmoronando as estruturas, desfez-se em riso o regelado rosto. A vida esfregava-se nela e por dentro a alma vagalumeava atordoada. 
Chegava ao fim a viagem. Mas a terra que pisava era desconhecida. E ao trabalho nem foi. Pegou caminho novo, foi para o parque.
Crianças brincando, pessoas caminhando... Sentou-se na grama. Seu olhar foi pousar na mãe que amamentava o bebê. Um aconchego de sol. O conforto delicado de um colo quente de mulher. 
O que ela queria da vida?
Naquela manhã aninhava os sentimentos que nasciam assustados. Foi quando, inesperadamente, veio a chuva. As pessoas correram fugidas do tempo que desabava. Ela também correu, mas não para fugir. 





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