quinta-feira, 9 de abril de 2015

Um poema de Eucanaã Ferraz

O Dragão
Semana que vem, chega-te pelo correio
a lua: puro papelão,
que aos teus dedos transmutará em loiça.

Não fosse a gripe que me assolou esses dias,
não fosse a preguiça, os livros e o sono,
eu te mataria um dragão.

Na entrada da tua vila, deixaria o bicho,
pesado como uma hecatombe
(um hematoma na boca do estômago,

as asas imensas de bomba
imersas numa poça de sangue verde).
Ora, não te assustes,

sei que te acostumei com presentes mais delicados.
Mas não seria preciso guardá-lo: telefonarias
para o Departamento de Limpeza Urbana

avisando que um louco que te ama
deixou um sonho morto
na porta da tua casa.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

De nevoeiro em nevoeiro


Éramos como irmãos gêmeos. Não por que fossemos fisicamente parecidos, mas por que andávamos sempre juntos. Também por que nossos nomes possuem a mesma inicial (o que é muito comum em irmãos gêmeos): o meu, Victor; o dele, Vicente.

É claro que não nos víamos dessa maneira. Eram nossos amigos que nos definiam assim, como gêmeos. Era alguém da turma nos ver chegando que logo apontava dizendo, "lá vêm os gêmeos, Victor e Vicente". E quando acontecia de um aparecer sem a companhia do outro, nos olhavam com estranheza como se nos faltasse uma parte do corpo.

Pegávamos o mesmo ônibus para ir à escola. Todos os dias. E quase sempre era em silêncio que ficávamos. Um ao lado do outro, cada um com sua música nos fones de ouvido. Às vezes, quando uma menina bonita entrava no ônibus, nos olhávamos e sorriamos, pensando a mesma coisa. Quando eu não tinha dinheiro pro lanche, ele me emprestava. Quando eu tinha e ele não, eu emprestava. E quando tínhamos muito pouco dinheiro fazíamos uma vaquinha e comprávamos um salgadão, pra dividir. Éramos assim.

Mas agora Vicente arranjou uma namorada, e o tempo que passava comigo, agora ele passa com ela. Dividem os fones de ouvido e eu não sei o que eles pensam quando se olham e sorriem um para o outro.
É estranho. No fundo a gente sempre acaba achando que as coisas vão continuar sendo o que são, que as pessoas vão ser sempre as mesmas, até que tudo toma um outro rumo e você se dá conta de que é sempre só você, de nevoeiro em nevoeiro.   

Agora ninguém mais estranha quando me vê chegando sem a companhia de Vicente. E eu sinto, estranhamente, que caminho sem os pés.  

quinta-feira, 24 de abril de 2014

variações do canto


há muitas maneiras de cantar sem usar a voz :

arrastar-se pelo chão
caminhar de mão dadas
pedalar de madrugada na rua vazia
olhar o que se ama
estar com quem se gosta
ouvir o canto é também cantar

há um canto inaudível saindo pelos poros
soando debaixo da pele
o corpo quando alegre, vibra
e canta






quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Menino ao vento


            Já fazia três semanas que ninguém dormia naquela casa. E se não bastasse isso, também durante o dia era impossível que alguém conseguisse descansar, ou até mesmo se concentrar em alguma coisa.
            A família, que se reunia alegremente aos domingos para assistir a dança dos famosos e discutir sobre qual havia sido a melhor performance, agora sentava em frente à TV desligada, os olhos vermelhos e vazios – como uma família de zumbis.
            Até Elizete, a empregada, mesmo dormindo bem todas as noites, já não trabalhava como antes. Era só entrar na casa, e passados quinze minutos, já começava a ficar confusa. Guardava a comida na máquina de lavar, as roupas na geladeira, e numa manhã de sábado, por pouco não assou o gato ao invés do frango. E tudo isso por que o grande problema daquela casa não era o sono. Mas o choro.
            Fazia exatamente três semanas que Miguel, o filho mais novo, não parava de chorar. Chorava de manhã à noite sem que ninguém soubesse o motivo que o afligia e conseguisse fazê-lo parar. E o que espantava não era só a persistência desse choro sem sentido, mas a quantidade de lágrimas que o menino produzia. Era possível torcer suas roupas e encher um balde no meio da tarde.
            Na primeira noite em que Miguel entrou chorando no quarto dos pais, ninguém deu muita importância. “Foi só um pesadelo, filho. Vem dormir”, disse a mãe. Mas quando o dia amanheceu, com o menino ainda berrando, o pai achou melhor levá-lo ao médico.
            Quando o Dr. Perguntou se lhe doía alguma coisa, a única resposta que conseguiu obter foram berros e soluços. Então após alguns exames concluiu-se que o menino não tinha nada.
            Em casa, a avó resolveu que ia chamar a benzedeira.
            Nem rezas, nem benzimentos, promessas, surras, ameaças, presentes, nada fez com que ele parasse de chorar. Lucia, a irmã, bem que tentou enfiar uma meia na boca dele, mas foi censurada pela mãe.
            No 21° dia, uma manhã de céu azul com passarinhos cantando, ninguém imaginaria o terror por qual aquela família passava.
            Imóveis em frente à TV, o pai, ainda com a faca que havia cortado o pão no café da manhã, resolveu que ia dar um jeito naquilo. Levantou, e a passos decididos, com a faca em punho, seguiu em direção ao quarto do filho. A mãe ainda conseguiu gritar “Mas ele é só uma criança!”
            Minutos depois o pai atravessou os olhares interrogativos, com o filho ainda chorando, no colo, e seguiu em direção ao quintal.
            Quando voltou, trazia apenas um sorriso de louco no rosto e disse “Deixem lá até que não reste mais nenhuma lágrima!”.
            Lá fora fazia um sol de rachar. E quando todos saíram pro quintal, à procura do Miguel, lá o encontraram. Com os olhos esbugalhados de espanto e indignação, pendurado no varal.


terça-feira, 30 de abril de 2013

Palavra transparente

Nem a angústia, nem a exaltação amorosa, nem a alegria ou o entusiasmo são estados poéticos em si, porque não existe o poético em si. São situações que, por seu próprio caráter extremo, fazem desabar o mundo e tudo o que nos rodeia, incluindo a morta linguagem cotidiana. Só nos resta então o silêncio ou a imagem. E essa imagem é uma criação, algo que não estava no sentimento original, algo que nós criamos para nomear o inominável e dizer o indizível. Por isso todo poema vive à custa de seu criador. Uma vez escrito o poema, aquilo que ele era antes do poema e que o levou à criação – isso, indizível: amor, alegria, angústia, tédio, nostalgia de outro estado, solidão, ira – se fundiu em imagem: foi nomeado e é poema, palavra transparente. 

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

A cela e o mar

A CELA

Esta cela em que te encontra
 – teu corpo, tua casa
vazia – e que julga ingenuamente
ser a tua liberdade
não é senão teu coração arranhado
teus cães latindo assustados
para o estranho em visita
querendo – com medo da dor –
amor um gesto de afago

O MAR

Teu coração às vezes um filhote
– de peixe ou pássaro –
quer crescer pela boca
pelos olhos
transbordar o mar
do teu interior

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Um poema de Mário Dionísio

Cantarolar pela rua Assobiar
de mãos nos bolsos como quem tem dez anos ou cinquenta
Ter aberto um jornal que não se lê
Interromper sem razão uma conversa
Voltar ou não voltar e afinal voltar
Contagiar desta alegria toda até aqui submersa
os que não sabem nada disto e disto riem
e só de ver sorrir assim também sorriem
confusamente sem saber porquê

isto de estar vivo é bom e não se explica
nem inventa

segunda-feira, 15 de abril de 2013

João e Pedro

Não fazia muito tempo que se conheciam. Amizade recente – ou talvez nem amizade ainda –. Estavam construindo um barco na marcenaria do pai de João. Era uma réplica de caravela, cheia de detalhes; muito trabalhoso. 

O que os unia era esse amor por barcos. Se encontravam às tardes, depois do colégio. Construíam juntos.

Pedro falava entusiasmado sobre os barcos que já havia visto. João gostava de ouvir, seu corpo era todo alegria perto daquele recente amigo. 

Havia também uns silêncios partilhados de que João gostava muito. Era como se mergulhasse em algum lugar desconhecido. Um  prazer estranho.

Às vezes João sentia certa inquietação. Uma vontade de encostar o peito no peito do amigo. Ficar, ali, sentindo o coração. Aquela outra vida colada à sua. Tão diferente, tão igual. Não era pra nada, não: só pra sentir. Porque sentir era bom. Mas não ousava dizer, nem pedir. Talvez o amigo não compreendesse. Pensasse sabe lá que coisas. E João não queria perder aquela tão boa companhia, aquele tão recente amor. Que não era amor de amigo ou de homem ( ou menino) por outro, essas delimitações. Mas amor puro.