sábado, 10 de outubro de 2009

Café amargo

Por trás da pele enrugada o que haveria? Um beijo guardado, um abraço que não deu, uma dor sufocada por tudo que perdeu, uma alegria? A pele enrugada guardara segredos? Quanta caricia de amor recebera aquela pele que um dia já havia sido macia e jovem? Talvez guardasse a infância em pérola, ou uma dor em espinho de flor.  Talvez.
No apartamento, bem arrumado e limpo, ela esperava o tempo pingar sua última gota. Vivia só. Era melhor assim? A filha - que a muito não vinha - viria visitá-la. Então, tomou banho e foi à padaria comprar pão: "Luciana vai querer café quando chegar". Os passos eram lentos e cansados: "Ah, a vida é sempre boa apesar de tudo". Em silêncio apreciava o caminho - O mesmo caminho de sempre. Mas tão mais bonito agora. A grama mais verde e os pingos de chuva que começavam a cair. Sentiu vontade de provar. E como naqueles atos impulsivos que temos: Abriu a mão em concha, pequena pocinha formou-se na palma. Lambeu com sede: "Luciana adorava tomar banho de chuva quando pequena". Subiu as escadas: "Luciana gosta de pão bem fresquinho..." Ao preparar o café lembrou de como era bom quando os filhos eram pequenos e tinham fome. E ela preparava bolos e tortas com amor. De como era bom olhar a casa cheia, os risos infantis a preencher o vazio, o marido a passar manteiga no pão enquanto via o noticiário. De como era bom aninhar um filho no colo. De como tudo era bom antes.
Há muitos anos o marido morrera, os filhos cresceram e partiram para seus pedacinhos de vida em outras cidades. Só restara Luciana, a vir vez ou outra. Porém, na maior parte do tempo ficava só. Gostava da casa em ordem, de assistir à TV molhando o biscoito no café com leite, de olhar pela janela...
Mas naquele momento - enquanto procurava o pote de açúcar para adoçar o café e Luciana subia as escadas - Naquele momento toda a vida encoberta pelo tecido enrugado diluiu-se na última gota de tempo, derramando por sobre o piso frio a casca que um dia abrigara amor, ódio, tristezas, alegrias...
Abriu a porta, a filha que já não mais esperada. Por trás da pele enrugada, apenas ossos agora. Para Luciana, o pão fresco e o café amargo.


*Publicado no Portal Cronópios 
Dia 10/10/2009

Um comentário:

  1. li-os e adorei. ótima escrita! ^^

    ah! e quanto ao meu aniverário, é hj mesmo, dia 11. A postagem faz referencia à festa, pq ela foi adiantada: ontem.

    obrigado pelas felicitações!
    abração!

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