terça-feira, 30 de abril de 2013

Palavra transparente

Nem a angústia, nem a exaltação amorosa, nem a alegria ou o entusiasmo são estados poéticos em si, porque não existe o poético em si. São situações que, por seu próprio caráter extremo, fazem desabar o mundo e tudo o que nos rodeia, incluindo a morta linguagem cotidiana. Só nos resta então o silêncio ou a imagem. E essa imagem é uma criação, algo que não estava no sentimento original, algo que nós criamos para nomear o inominável e dizer o indizível. Por isso todo poema vive à custa de seu criador. Uma vez escrito o poema, aquilo que ele era antes do poema e que o levou à criação – isso, indizível: amor, alegria, angústia, tédio, nostalgia de outro estado, solidão, ira – se fundiu em imagem: foi nomeado e é poema, palavra transparente. 

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

A cela e o mar

A CELA

Esta cela em que te encontra
 – teu corpo, tua casa
vazia – e que julga ingenuamente
ser a tua liberdade
não é senão teu coração arranhado
teus cães latindo assustados
para o estranho em visita
querendo – com medo da dor –
amor um gesto de afago

O MAR

Teu coração às vezes um filhote
– de peixe ou pássaro –
quer crescer pela boca
pelos olhos
transbordar o mar
do teu interior

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Um poema de Mário Dionísio

Cantarolar pela rua Assobiar
de mãos nos bolsos como quem tem dez anos ou cinquenta
Ter aberto um jornal que não se lê
Interromper sem razão uma conversa
Voltar ou não voltar e afinal voltar
Contagiar desta alegria toda até aqui submersa
os que não sabem nada disto e disto riem
e só de ver sorrir assim também sorriem
confusamente sem saber porquê

isto de estar vivo é bom e não se explica
nem inventa

segunda-feira, 15 de abril de 2013

João e Pedro

Não fazia muito tempo que se conheciam. Amizade recente – ou talvez nem amizade ainda –. Estavam construindo um barco na marcenaria do pai de João. Era uma réplica de caravela, cheia de detalhes; muito trabalhoso. 

O que os unia era esse amor por barcos. Se encontravam às tardes, depois do colégio. Construíam juntos.

Pedro falava entusiasmado sobre os barcos que já havia visto. João gostava de ouvir, seu corpo era todo alegria perto daquele recente amigo. 

Havia também uns silêncios partilhados de que João gostava muito. Era como se mergulhasse em algum lugar desconhecido. Um  prazer estranho.

Às vezes João sentia certa inquietação. Uma vontade de encostar o peito no peito do amigo. Ficar, ali, sentindo o coração. Aquela outra vida colada à sua. Tão diferente, tão igual. Não era pra nada, não: só pra sentir. Porque sentir era bom. Mas não ousava dizer, nem pedir. Talvez o amigo não compreendesse. Pensasse sabe lá que coisas. E João não queria perder aquela tão boa companhia, aquele tão recente amor. Que não era amor de amigo ou de homem ( ou menino) por outro, essas delimitações. Mas amor puro.

domingo, 14 de abril de 2013

Um poema do Bukowski

SEM CHANCE DE AJUDA

há um lugar no coração que nunca será preenchido
um espaço e mesmo nos melhores momentos
e nos melhores tempos
nós saberemos
nós saberemos mais que nunca
há um lugar no coração que nunca será preenchido
e nós iremos esperar e esperar
nesse lugar.