sábado, 31 de outubro de 2009

O desastre de Sofia

O sol fia o dia
E Sofia fia o seu tempo:
Pedaços de linha ao vento

Sorrisos desencontrados
E no silêncio da tarde
um coração rasgado

Ardia o sol ao meio dia
Ardia o peito de Sofia

Ela não sabia
o perigo que corria
E foi ver seu coração
afogar-se na água fria

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Como presente um olhar

Estava chegando o natal e eu, como toda criança, ansiava desesperadamente por presentes. Na casa vizinha a família costumava preparar um "natal para os carentes", em que doavam brinquedos às crianças. Nunca fui carente de brinquedos - sempre tive muitos -, mas como criança nunca perde uma oportunidade. Lá estava eu, na fila que se fez comprida na rua de minha casa. O suor a escorrer pelo rosto, a roupa amassada de tanto brincar. Não. Não havia nada que me distinguisse das outras. Tínhamos o mesmo sorriso ansioso de quem espera: Bola, boneca, um jogo de damas... Não importava o que. O importante era ter?
Enquanto a fila encurtava, ia crescendo no coração, dos meninos e meninas, uma esperança de alegria. Eu via passar o menino com seu carrinho de brinquedo: Olhar estrelado a reluzir em silêncio. Via a menina com a boneca nos braços a ensaiar maternidade: Doce sorriso a colorir o mundo. O presente a pulsar dentro do peito como vida soprada pra dentro.
Enfim chegara a minha vez. A moça olhou-me sorridente e disse: "Pra você eu tenho uma boneca". Estendeu-me o pequeno pacote. Senti a gota de suor escorrer para os lábios. O gosto salgado de vida. E o olhar da moça sobre mim... Carícia silenciosa dos olhos que vêem o outro.
Naquele momento eu não era mais uma criança com um presente: era um ser humano que nascia de um olhar de afago. O importante era ser... Ser visto.

sábado, 10 de outubro de 2009

Café amargo

Por trás da pele enrugada o que haveria? Um beijo guardado, um abraço que não deu, uma dor sufocada por tudo que perdeu, uma alegria? A pele enrugada guardara segredos? Quanta caricia de amor recebera aquela pele que um dia já havia sido macia e jovem? Talvez guardasse a infância em pérola, ou uma dor em espinho de flor.  Talvez.
No apartamento, bem arrumado e limpo, ela esperava o tempo pingar sua última gota. Vivia só. Era melhor assim? A filha - que a muito não vinha - viria visitá-la. Então, tomou banho e foi à padaria comprar pão: "Luciana vai querer café quando chegar". Os passos eram lentos e cansados: "Ah, a vida é sempre boa apesar de tudo". Em silêncio apreciava o caminho - O mesmo caminho de sempre. Mas tão mais bonito agora. A grama mais verde e os pingos de chuva que começavam a cair. Sentiu vontade de provar. E como naqueles atos impulsivos que temos: Abriu a mão em concha, pequena pocinha formou-se na palma. Lambeu com sede: "Luciana adorava tomar banho de chuva quando pequena". Subiu as escadas: "Luciana gosta de pão bem fresquinho..." Ao preparar o café lembrou de como era bom quando os filhos eram pequenos e tinham fome. E ela preparava bolos e tortas com amor. De como era bom olhar a casa cheia, os risos infantis a preencher o vazio, o marido a passar manteiga no pão enquanto via o noticiário. De como era bom aninhar um filho no colo. De como tudo era bom antes.
Há muitos anos o marido morrera, os filhos cresceram e partiram para seus pedacinhos de vida em outras cidades. Só restara Luciana, a vir vez ou outra. Porém, na maior parte do tempo ficava só. Gostava da casa em ordem, de assistir à TV molhando o biscoito no café com leite, de olhar pela janela...
Mas naquele momento - enquanto procurava o pote de açúcar para adoçar o café e Luciana subia as escadas - Naquele momento toda a vida encoberta pelo tecido enrugado diluiu-se na última gota de tempo, derramando por sobre o piso frio a casca que um dia abrigara amor, ódio, tristezas, alegrias...
Abriu a porta, a filha que já não mais esperada. Por trás da pele enrugada, apenas ossos agora. Para Luciana, o pão fresco e o café amargo.


*Publicado no Portal Cronópios 
Dia 10/10/2009

quinta-feira, 8 de outubro de 2009